quinta-feira, 11 de outubro de 2007

A FOTOSSÍNTESE

O dia amanhecera ensolarado naquele final de outubro. Da janela da sala de aula, no andar térreo, era possível avistar o último resquício de mata nativa nas redondezas desse novo prédio do Centro de Ciências Jurídicas. Um matagal que, não obstante a sua insignificância em área, era um foco de resistência contra o “progresso”, sendo saudosamente conhecido pelos acadêmicos, em razão da sua denominação, dada em homenagem a um dos docentes da casa.

A primeira aula do dia já rumava para o seu término, estando o professor ministrando as suas considerações finais, enquanto alguns dos colegas esperavam para expor suas dúvidas em relação à matéria lecionada. Aguardávamos, ansiosos, pelo intervalo, um breve momento de descanso que, embora exíguo, nos era extremamente salutar. E, naquele dia, o seria mais ainda, pois o sol, desaparecido em razão dos últimos dias chuvosos, aparecera radiante, trazendo consigo aquele clima típico do verão que se aproximava.

Como adorávamos o verão! Estação do calor, do sol, das tempestades refrescantes do final de tarde. Claro, o clima úmido e quente transformava as classes em verdadeiras fornalhas, tamanho o grau de insalubridade. Porém, ainda assim trazia os seus brindezinhos: as pessoas acordavam mais ativas, alegres e, algumas vezes, sensuais. Dias como aqueles eram perfeitos para rumarmos em direção ao gramado do prédio vizinho, permeado de bancos e arbustos, onde nos poderíamos estabelecer no ponto com a melhor visão de todo o local, para então darmos início ao que poderia ser cunhado “nosso ritual”.

Sim, esse ritual que cumpríamos religiosamente desde os primeiros dias de faculdade, sempre que o clima era propício para tanto. Começou quando ainda éramos calouros, anônimos uns aos outros, mas que tinham em comum o vigor decorrente dos hormônios que guiavam qualquer ser humano na flor da idade.

Chamávamos-lo de “fotossíntese”, nome deveras estranho para os meios jurídicos, porém compreensível para uma leva de recém-vestibulandos, ainda bitolados pelos conteúdos do ensino médio. E o era assim denominado porque, basicamente, ficávamos largados ao sol, refestelando-nos como lagartos preguiçosos, recompondo nossas energias enquanto absorvíamos todo aquele calor. A analogia com as plantas era – mais do que pertinente – óbvia.

Como passatempo – embora não nos agradasse que esse tempo passasse muito depressa – conversávamos sobre as mais diversas futilidades: algum assunto lido no jornal do dia anterior, na revista semanal, ou visto nos telejornais das primeiras horas da manhã. Apresentavam-se as mais variadas notícias, todas, naquela hora, de igual importância, fossem elas mexericos de política, religião, futebol, ou algum outro tema de relevante interesse para a segurança nacional. Enfim, o que melhor aprouvesse ao humor dos companheiros de conversa.

Qualquer que fosse o tema escolhido, as discussões eram acaloradas, alternando-se as opiniões nos debates. Fervilhava-nos a paixão pelos discursos, como senadores a decidir o futuro da nação, ou como futuros juristas a fazer uma explanação oral. Não havia problema insolúvel; dali, saíam respostas para todas as mazelas que afligem o mundo! Sentíamo-nos como grandes filósofos do pensamento ocidental, oráculos de sabedoria dos meios acadêmicos.

Porém, o assunto principal desse plenário não poderia ser outro: os dotes físicos das respeitáveis senhoritas que por ali passavam. Não, caros senhores, não se tratava de perversão dos ilustres jovens. À primeira vista, pode parecer que agíamos de forma deveras machista, como meros fornicadores, ávidos por um belo par de pernas femininas.

Todavia, naquela hora não alimentávamos a lascívia. Nossa prática limitava-se tão somente a uma espécie de idolatria pagã, cujas deusas não ficavam confinadas a um Monte Olimpo ou a um Valhala. Que imensa vantagem tínhamos sobre os guerreiros da Antigüidade! Para eles, aproveitar as benesses dessas beldades era um privilégio restrito, concedido somente após uma morte gloriosa, ocorrida no campo de batalha. Para nós, reles e pacatos mortais, elas estavam todas ali, presentes de corpo e alma, quiçá tangíveis, para deleite de nossos sôfregos olhos.

Nutríamos nada mais do que uma adoração platônica pelas formas angelicais que, diante de nós, desfilavam, garbosas, como se a sua existência se limitasse a atormentar as almas masculinas, abobalhadas com toda aquela voluptuosidade. Torturavam-nos, em movimentos que pareciam não ter fim, e deixavam-nos maravilhados diante de toda aquela generosidade concedida pela Mãe Natureza, ou, quem sabe, por repetidas dietas alimentares, combinadas com horas diárias de exercícios físicos. Não nos importava a causa de tal fenômeno estético, mas apenas suas agradáveis conseqüências, acentuadas pelas roupas sobremaneira exíguas, compatíveis com o dia quente que fizera.

De vez em quando, algum dos colegas se exaltava, e murmurava algum gracejo nada requintado, daqueles que, em sendo ouvido pela destinatária, seria prontamente correspondido com palavras de baixo calão, incompatíveis com moças de tão fino trato. Felizmente, nunca houve tal acontecimento para ensejar tamanha conseqüência, o que certamente teria comprometido a magia do momento.

Regozijados com aqueles poucos minutos de visões magníficas, trilhávamos, enfim, o caminho de regresso à sala de aula, para dar seguimento ao aprendizado acadêmico. Voltávamos embriagados com toda aquela delicadeza e formosura, e com a certeza de que, no dia seguinte, se ensolarado, poderíamos fazer tudo outra vez.

(Crônica publicada originalmente em livro em homenagem aos 70 anos da Faculdade de Direito da UFSC. Meio exagerada em alguns momentos – para não dizer piegas e cheia de clichês, em outros – mas para a época valeu.)

Um comentário:

Aline disse...

O pior é que ainda é assim neh... lá e em qualquer lugar. Beijos