segunda-feira, 14 de maio de 2007

DESVENTURAS DO SACERDÓCIO JOANINO

Podemos conceituar um sacerdote como um ministro religioso, habilitado para dirigir ou participar em cerimônias de culto. Muitas culturas os celebram como seres de notável inteligência e virtude, detentores de um saber filosófico cuja compreensão não compete a nós, pobre seres mundanos entregues ao materialismo e à luxúria.

No catolicismo, o sacerdote chama-se padre. O catecismo dessa religião ensina que este é o porta-voz e os braços de Deus. Para tanto, deve possuir vocação para a vida religiosa, bem como celebrar alguns votos, entre os quais, pelo que lembro, figuram o da obediência a Deus e o do celibato.

Não vejo, nem nunca vi, essas virtudes em minha pessoa. Em primeiro lugar, eu não poderia celebrar um voto de obediência a uma entidade metafísica, quando não o conseguia fazer nem em relação aos meus pais, com toda a existência física dos seus chinelos. Quanto ao celibato, não devo ter discordado dele durante a infância. Contudo, quando a puberdade e seus hormônios afloraram em mim - juntamente com as espinhas a que tinham direito - provavelmente excluí esse vocábulo de minha língua corrente.

Muito embora minha alma estivesse léguas atrás da virtude religiosa, havia pessoas que pensavam o contrário. Lembro-me em minha infância de alguns familiares que, ao olharem para mim, insistiam em atribuir-me uma vocação que nunca tive. Diziam eles, cada vez que me viam: "Esse menino vai ser padre". Não adiantava retrucar. Eu era uma criança; logo, qualquer manifestação minha seria recebida não como uma opinião, mas sim como uma frase após a qual certamente seria ouvida a expressão "que engraçadinho".

Jamais entendi essa obsessão familiar em querer que eu seguisse tal vocação religiosa. Afinal, eu era o único neto homem de meu avô, por conseguinte o único capaz de levar a memória de minha família às gerações futuras, ao menos do ponto de vista do registro civil. Ora, como eu poderia fazê-lo sendo um religioso católico celibatário? Teria eu de deixar de ser celibatário, e portanto indigno de ser um religioso católico. Ou, então, dirigiria minha vocação para outra confissão que não impusesse o celibato aos seus ministros, fato que, para uma família tipicamente açoriana como a minha, seria mais indigno do que tornar-me um religioso católico não-celibatário.

Os anos se passaram, e com eles qualquer esperança de eu ser jogado à rotina diária de um seminário católico. Aliás, fui jogado para uma rotina bem distante disso, entregue às virtudes e vocações mundanas. Todavia, vinte anos mais tarde, outras pessoas devem ter visto em mim a mesma vocação religiosa que meus parentes um dia viram.

Alguns colegas de trabalho resolveram aproveitar o mês de julho para realizar uma festa junina, ou melhor, "julina", como diziam. Talvez não houvesse lhes vindo a idéia de que não seria necessário alterar o nome do evento, pois o adjetivo "junina" vem de "joanina", ou seja, referente a São João, o santo católico homenageado no dia 24 de junho. No entanto, quem poderia culpá-los? Eu mesmo não o saberia, caso não houvesse consultado uma enciclopédia enquanto escrevia essas linhas.

No intuito de identificar o evento com a sua proposta, sugeriram a montagem de uma curta apresentação teatral, em torno do tema "casamento na roça", integrante do folclore joanino. Entre as personagens, figurava o papel do padre. E adivinhem quem foi indicado para personificá-lo? Sim, aquele que, no entender de alguns colegas, tinha "cara de padre": eu mesmo.

Prontamente rebati a idéia de meus colegas, classificando-a como inapropriada, para não dizer ridícula. Mas aos poucos, diante da insistência de uma amiga, organizadora do evento, minha resistência à idéia foi cedendo. Afinal, quem poderia resistir àquele par de olhos azuis que pareciam suplicar "por favor, ajuda"? Enfim, tomado por um sentimento de companheirismo, fui convencido a aceitar o convite para interpretar o tal ministro religioso.

Chegou o dia dos festejos. Batina no corpo, bíblia na mão, cerveja no sangue e pernas trêmulas, dei início às minhas falas, todas de improviso. Para dar um charme à apresentação, até comecei a orar, em latim: "Pater noster, qui es in cælis, sanctificetur nomen tuum; adveniat regnum tuu" e assim sucessivamente. Obviamente, não devo ter recitado essas palavras como um pretor romano, se é que de fato as pronunciei. Entretanto, creio que a bebida - em mim e nos convivas - fez a prece soar algo bem próximo disso.

Passaram-se os minutos, as falas de improviso, algumas tiradas cômicas, e enfim encerrou-se a cena folclórica, sob aplauso dos colegas. E foi assim que, naquele dia, satisfiz essa vontade, já perdida no tempo, de meus familiares: tornei-me padre. De festejos joaninos, é verdade. Mas é melhor do que nada, não é mesmo? Um belo prêmio de consolação para aqueles que ainda vislumbram um traço de santidade numa alma tão impura.

(crônica publicada originalmente em livro resultante do II Concurso Literário da Semana do Servidor de SC)

Um comentário:

Marcos Cabral disse...

Opa...
Tô vendo que o ócio anda grande por aí hein Sr. Estatuto!!
Eu fiz uma operação na perna e vou ficar duas semanas de molho, quer dizer, a primeira já foi.. Preciso terminar (praticamente começar) o Estágio III pra me formar em julho.. Vou tentar fazer isso..
Cara, eu troquei o endereço do meu blog, porque aquele zip.net é muito ruim (UOL né..). Repassei todo o 'conteúdo' pro Blogspot (agora também nas mãos do Deus Google, que sabe até meu jeito de escrever, QUE MEDO). O endereço é esse, tem alguns textos novos, mas claro que meu ócio não chega aos pés do seu, até porque é impossível escrever no Judiciário Estadual (muitos processos)..
Nem sei se vou fazer AGU cara, tá muito em cima e não sei se vou conseguir estudar, mas se fores fazer te desejo sucesso...
Abração aí e a gente se fala...